“Minha liberdade é escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo.” Clarice Lispector
“Não tenho força física, mas as minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrizáveis” Carolina Maria de Jesus
Neste ano de 2007 completam-se trinta anos da morte de dois dos mais expressivos nomes femininos da literatura brasileira, Clarice Lispector (1920-1977) e Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Essas duas mulheres representam, cada uma a seu modo, um grito de protesto contra as injustiças da sociedade brasileira e ambas contribuíram com seus escritos para a reflexão do papel da mulher ao longo do século XX. Embora tivessem um meio de expressão comum, a arte literária, percorreram trajetórias totalmente opostas e chegaram a literatura por caminhos diversos, levando-as inexoravelmente a ocupar papel ativo e questionador do comportamento feminino, sua condição condição histórica e seu papel na sociedade brasileira da segunda metade século passado.
Clarice Lispector nasceu em Tchetchelnik na Ucrânia, nas palavras dela “uma cidade tão pequena que nem figura no mapa”, em 10 de dezembro de 1920, num momento em que seus pais, judeus, se preparavam para imigrar para o Brasil, fugindo da perseguição anti-semita e da Revolução Bolchevique de 1917. Clarice chegou em terras brasileiras com dois meses de idade, juntamente com a família, estabelecendo-se primeiramente em Maceió(AL) e mais tarde em Recife(PE). Em 1943, aos 23 anos, casou-se com o diplomata Maury Gurgel Valente, passando a residir em vários países, até retornar ao Brasil em 1959.
Carolina Maria de Jesus nasceu em 14 de março de 1914, também em uma pequena cidade, Sacramento, uma então provinciana localidade do interior de Minas Gerais. Em Sacramento Carolina conheceu a humilhação, a discriminação e a falta de recursos que a impossibilitaram de integrar-se minimamente na sociedade extremamente elitista daquela época, devido a sua condição de neta de escravos, negra e pobre. Carolina passou a infância e adolescência perambulando pelas cidades do interior de Minas e São Paulo, procurando encontrar melhores formas de manter a vida. Em 1937, aos 23 anos, vivendo em Franca-SP, perdeu a mãe, único vínculo que a mantinha ainda ligada a região, e resolveu partir para capital do estado em busca de melhores chances de sobrevivência. Entre empregos informais e trabalhos domésticos, a futura escritora, sonhava com o mundo das letras. Mais tarde, morando na favela e vivendo da coleta de papéis, Carolina escrevia constantemente, em folhas encontradas no lixo.
O reconhecimento viria mesmo quase que por acaso, quando em 1958, o repórter do jornal “Folha da Noite”, Audálio Dantas é designado para fazer uma matéria sobre a favela do Canindé. Entre os barracos da favela, o jornalista se depara com a intelectualidade de Carolina no meio daquela miséria, e ela mostra seus textos a ele. É seu diário, escrito desordenadamente, em folhas soltas, em cadernos velhos, relatando a dura realidade em que vivia Carolina e os outros favelados do Canindé. O jovem repórter fica maravilhado com a leitura. No dia 19 de maio de 1958, o jornal publica parte do texto, sendo elogiado. Em 1959, Audálio Dantas já trabalhando na grande revista da época – O Cruzeiro, publica trechos do Diário, mas somente em 1960, com uma tiragem inicial de 10 mil exemplares é publicada a obra: “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”. Na noite de autógrafos, são vendidos 600 exemplares, no fim do ano as vendas somavam 100 mil cópias. “Quarto de Despejo” seria republicado em pelo menos 13 línguas em mais de 40 países, incluindo a então União Soviética e o Japão. Sua projeção foi vertiginosa, e conforme explica José Carlos Sebe Bom Meihy, “Jamais outro livro publicado no Brasil com testemunhos de mulheres alcançou níveis equiparáveis ao de Carolina”. Segundo Meihy “Quarto de Despejo”, até 1998, teria “Um milhão de cópias vendidas em todo mundo, sendo inclusive o texto brasileiro mais publicado de todos os tempos”.
Clarice Lispector era formada em Direito, estudou latim, viveu em Nápoles, Washington, Berna, traduziu obras para o português, atuou como repórter e jornalista. Era dona de uma prosa densa, rebuscada, rica em inovações sintáticas e recursos lingüísticos. Em 1944 publicou o primeiro de seus vários romances: "Perto do Coração Selvagem". Clarice surpreendeu a crítica, quer pela problemática e caráter existencial, completamente inovadora, quer pelo estilo singular, fragmentário, revolucionário. Autora de quase vinte obras, se consagraria principalmente com "A Paixão segundo GH” (1964), o "Lustre” (1946) e "A Hora da Estrela” (1975). Pela densidade de sua narrativa, e o profundo perfil psicológico de seus personagens, tem sido comparada a Kafka e junto com Guimarães Rosa, constitui um capítulo especial na história da Literatura Brasileira.
Carolina estudou até o segundo ano primário, as viagens que fez foi peregrinando pelo interior de Minas Gerais e São Paulo, em busca de emprego e melhores perspectivas de vida. Sua escrita é simples, no estilo mais básico e direto: - o diário, por vezes contendo erros de gramática e ortografia, sem contudo, jamais perder a riqueza dos pensamentos bem elaborados.
Mas em ambas escritoras é latente o talento literário nato, a narrativa envolvente e a visão literária como algo predestinado, capaz de guiar suas próprias vidas.
Depois de seu sucesso estrondoso, e em virtude de sua inadequação ao estilo de vida que se esperava que seguisse ao alçançar o sucesso, e por seu temperamento independente, contestador e original, Carolina sentiu-se usada, expôs-se muito, foi consumida e descartada. Passou a ser vista como uma figura incômoda para a elite brasileira, porque revelava sem disfarces os preconceitos e a injustiça social reinante no país. Por isso foi relegada ao segundo plano das letras nacionais. “Ser negra num mundo dominado por brancos, ser mulher num espaço regido por homens, não conseguir fixar-se como pessoa de posses num território em que administrar o dinheiro é mais difícil do que ganhá-lo, publicar livros num ambiente intelectual de modelo refinado, tudo isso reunido fez da experiência de Carolina um turbilhão”, são as impressões de Meihy acerca desse período.
Clarice Lispector também lançou uma voz de protesto dirigida a uma elite que se auto-sufocava, de mulheres ainda não libertadas do conservadorismo que impregnava a sociedade brasileira do início do século XX. Refletiu a difícil situação da mulher brasileira, seja o enclausuramento das senhoras burguesas, em “A Paixão Segundo GH”, seja a opressão e falta de horizontes dos emigrantes nordestinos, achatados pela grande cidade, em “A Hora da Estrela”.
Carolina bradava em favor dos desvalidos, dos favelados, daqueles que não tiveram a oportunidade nem a “regalia” de sofrerem com problemas existenciais.
Mas ambas “se encontraram no sentido mais profundo do seu trabalho. Ambas viram e documentaram o sofrimento das pessoas, especialmente o sofrimento da mulher”. como muito bem observou a profa. Eva Paulino Bueno, da St. Mary’s University, do Estado do Texas, nos EUA.
As vozes de Clarice e Carolina repercutiram além dos limites nacionais, com suas obras publicadas no exterior, foram e continuam sendo alvo de teses e estudos acadêmicos em vários países, mas principalmente nos Estados Unidos, visando desvendar os mistérios de suas produções literárias e avaliar a contribuiçao intelectual e social como mulheres, brasileiras e escritoras.
Clarice, talvez por sua trajetoria mais “elitizada” consagrou-se como figura inconteste da literatura brasileira, e tem sido motivo das mais diversas homenagens e reverências ao longo dos últimos trinta anos.
O nome de Carolina, pelo contrário, enfrentou grande resistência de aceitação por uma elite intelectual que se recusava em ver em uma negra favelada o raro talento para a literatura “Ao contrário de suas pares (Nélida Pinon, Clarice Lispector, Henriqueta Lisboa), que só cresceram, a carreria de Carolina obedeceu o caminho do declínio (..) O avesso dessa questão sugere a crueldade da elite nacional que, através da redefinição constante do chamado código culto, elide uma participante que, apesar de sua obra extensa e original, deixa de ser considerada”. (JCSBM)
Mas embora se tentasse “apagar” sua imagem nas primeiras duas décadas depois de sua morte, Carolina vem experimentando nos últimos anos uma retomada na discussão de sua obra, sendo alvo de estudos consistentes, principalmente no exterior. Em 2005 o Governo do Estado de São Paulo inaugurou, junto ao “Museu Afro Brasil”, no Parque do Ibirapuera, uma biblioteca que leva o nome da escritora. Em 2003 o Diretor Jefferson De produziu o curta-metragem “Carolina”, protagonizado pela atriz Zezé Mota e premiado como vencedor do Festival de Gramado daquele ano. Teses de Doutorado foram produzidas tendo como tema a vida e obra da escritora, especialmente a partir do ano 2000. “Quarto de Despejo” foi selecionado para os vestibulares da UFMG em 2000 e UNB em 2004. Em 2007 a Editora Bertolucci, da terra natal da escritora, reedita “Diário de Bitita”, obra originalmente publicada na França(1982) e no Brasil (1986) em edição da Nova Fronteira, há muito esgotada.
Mas embora essas ações sejam positivas, e tenham contribuido para consolidar a vertente de retomada do nome da escritora, é evidente que ainda há que se percorrer um longo caminho até que Carolina Maria de Jesus seja devidamente respeitada e aceita pela sua singular importância, como uma das escritoras mais originais que o Brasil conheceu.
"Manuel apareceu dizendo que queria casar-se comigo. Mas eu não queria porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E levanta para escrever. E que deita com o lápis e papel debaixo do travesseiro". Carolina Maria de Jesus"
"Nasci para escrever. Cada livro meu é uma estréia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que chamo de viver e escrever.” Clarice Lispector
Autor: Alessandro Abdala
Artigo originalmente publicado na Revista Destaque IN, nº74
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